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Mai 04

 


Mais uma crónica da viagem de Zoltán Biedermann ao Irão.


Findo o colóquio internacional de cartografia histórica do Golfo Pérsico, que reuniu uns poucos especialistas ocidentais com uns tantos e insuportáveis caga-palavras locais, dirigimo-nos ao impecável aeroporto doméstico de Teerão e fomos até Isfaão. Azadi! (libertação!) Para trás ficavam discussões fogosas sobre a necessidade de extirpar a designação, ainda corrente em certos países vizinhos, do Golfo como sendo árabe (e não persa), sobre a arrogância com que nós, europeus, vínhamos falar dos nossos mapas renegando a cartografia islâmica para segundo plano (na verdade fomos contactados pela Universidade de Teerão precisamente para trabalhar sobre mapas ocidentais, porque dos outros pouco ou nada se sabe), etc. etc. Sair desse buraco foi, em suma, um alívio monumental. No saldo positivo ficava o que de costume se designa por... E tudo o que já descrevi. Venham então os contos de fadas, os verdadeiros. Isfaão, ocre e cheiro-de-coriandro, e atravessada por um rio que, por esta época do ano, ainda gurgita águas frescas descendo as encostas dos Montes Zagros. Essas águas trazem frescura e uma brisa que se mete pelas arcadas de três maravilhosas pontes do século XVII. Por entre as arcadas, festivamente iluminadas durante a noite, milhares de jovens e de famílias passeiam e vagueiam, sentando-se ocasionalmente em casas de chá cheias de magia para fumar o narguile, ou simplesmente à beira da água, conversando, rindo e gozando imenso com os raros estrangeiros que a essa hora da noite ainda ousam fugir dos seus hotéis e meter-se no meio da confusão. Há uns poucos sítios assim no mundo, desde os canais de Leiden até à Ribeira do Porto, mas aqui no Irão, confesso, não estava à espera de encontrar nenhum. Para mais com tanta categoria, tanto estilo e tanta descontracção! Para além das passeatas nocturnas à beira-rio, Isfaão é também um lugar capital da história persa. Foi aqui que, umas décadas antes de Luis XIV, Shah Abbas criou um centro de poder cuja principal mensagem arquitectónica era a da grandeza absoluta. No centro da cidade, uma praça imensa acolhe o visitante entre arcadas infindáveis e as fachadas de três mamarrachos verdadeiramente magníficos (duas mesquitas cobertas de azulejos coloridos e um delicioso palácio avarandado com vista para as montanhas em redor). 400 anos antes de nós, uns corajosos agostinhos portugueses andaram por esta corte, fazendo sabe-se lá precisamente o quê. Os nossos palpites iam, naturalmente, para noitadas magníficas (não encontro outra palavra melhor) cheias de volpúcias doces e refinadas, largamente devedoras da tolerância com que por então ainda eram consumidos os excelentes vinhos de Shiraz (aqueles mesmos que hoje nos chegam da Austrália). Os agostinhos entretanto foram-se embora, e os vinhos também. Ficaram as mulheres, embrulhadas em sacos de batata negros que a maioria espera poder em breve queimar, e os azulejos. Azulejos cobrindo as paredes dos pátios das mesquitas, azulejos reflectindo águas e águas reflectindo azulejos, azulejos adornando cúpulas reminiscentes do Panteão e ainda azulejos de todas as cores acolhendo o visitante em gigantescos arcos de entrada, do estilo de Samarcanda, mas, segundo nos explicam cá, muito maiores. Um sonho verdadeiro! Ficar ali, vagueando por entre mil maravilhas da arte islâmica, que bom poderia ser. E que pena que, ao entregar-nos as chaves dos nossos quartos, o dono do hotel, um irano-americano com sotaque da Califórnia, me tivesse apenas podido dizer: I wanna get out of here... I don’t like this... Come on... É assim o mundo, nada é perfeito, ainda que às vezes se pense que poderia ser.


Zoltán Biedermann

publicado por Francisco Caramelo às 19:31

“The party arrived on the day appointed and took their seats. Everybody asked after everybody else’s health, and were asked in return, and Allah duly thanked. Coffee was passed round, and, after that, the customary small talk ensued, without which no Arab meeting is considered opened. At last, after the seventh round of thanking Allah for their individual good health, the main subject was broached and the terms stated.”


Jonh Allegro The Dead Sea Scrolls


Sobre o processo de aquisição de alguns dos manuscritos

publicado por Francisco Caramelo às 19:30

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