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Dez 04
 

Uma das primeiras coisas que precisamos de meter na cabeça quando tentamos imaginar Moscovo é que tudo é enorme. Corbusier, o herói daquilo que nós por convenção pensamos ser a “modernidade ocidental”, fez em Moscovo aquilo que não podia fazer em casa, onde, apesar de tudo, já existia um mínimo de normalidade cívica e de participação democrática nas decisões. Na capital russa, a única coisa que não o deixaram arrasar foi o centro histórico da cidade, e o arquitecto bem que protestou. O Kremlin, o Bolshoi, a Tverskaia e os bairros mais imbuídos do poder czarista não podiam deitar-se abaixo, nem mesmo no mais horripilante auge do domínio estaliniano, nas décadas de 30 e 40.


 


Restava todo o resto, e foi mesmo abaixo. Ao longo de sete décadas de economia planificada, Moscovo absorveu, com as suas gigantescas áreas fabris e o seu não menos gigantesco aparelho burocrático, pessoas de todo o império até chegar, nos anos 70, aos dez milhões. Hoje, com as megápolis do terceiro mundo a meter no bolso qualquer Tóquio ou Nova Iorque, já não parece muito. Mas na altura, era o símbolo de que, no grande xadrez político internacional, a capital soviética era um dos centros potenciais do sistema-mundo. Perante o afluxo das pessoas que fugiam dos campos e das kolkhozes, o governo chegou mesmo a instaurar cotas de imigração para a capital, não conseguindo evitar tudo aquilo que isso acarreta também no imaginário ocidental dos nossos dias: imigrantes ilegais, casamentos brancos etc.


 


Meter dez milhões de pessoas em casas novas não é para qualquer um, mas Corbusier deu a receita: fazem-se caixotes de dez a vinte andares e organizam-se em unidades de urbanização plantadas no meio da paisagem. Depois, ligam-se as unidades umas às outras por artérias onde as pessoas passam tanto tempo a circular de um lado para o outro (por exemplo entre a casa e o trabalho) que o problema do activismo político nem sequer se coloca (ninguém tem tempo para conspirar). As artérias consistem em gigantescas vias multiuso que se dirigem, num esquema radial, para o centro político: o buraco da tarántula onde, na realidade, ninguém quer cair. Cada uma das avenidas ou Prospekts inclui uma dezena de faixas rodoviárias, áreas verdes, largos passeios pedestres e toda a gama de infraestruturas de transporte colectivo socialista: trolleys e autocarros fabricados na Hungria (os mesmos veículos marca Ikarus circulam ainda hoje em Budapeste, Teerão e Vladivostok), eléctricos e, claro, o famoso Metro.


 


Contrariamente a alguns monumentos míticos onde o visitante apanha uma grande desilusão no primeiro momento (por exemplo o próprio Metro de Paris, “capital do século XIX”, lento que nem um caracol reumático) o Metro de Moscovo corresponde desde o início a todas as expectativas. É enorme, é muito, muito barulhento, e incrivelmente eficiente, circulando nas horas de ponta a um ritmo de dois comboios por minuto e transportando o maior número de passageiros de qualquer sistema do planeta. Constitui uma mistura muito poderosa de grande produção industrial (siderurgia siberiana, mecânica pesada moscovita, pedraria uraliana empregues nos túneis e nos comboios) com o gosto decorativo tardo-burguês, art-déco fascizoide e modernista piroso das décadas de 30 a 60, na decoração das estações. Curiosamente, poucos elementos aparentam ser estalinistas tout-court, mas isso é porque o estalinismo na arquitectura é uma mistela de elementos cuja única obrigação, para fazerem parte do conjunto, é serem grandes e terem pretensões monumentais.


 


Para captar o “charme” da coisa, o melhor é mergulhar nas multidões e deixar-se arrastar pela corrente, qual corpúsculo nas veias da grande capital imaginada por Estaline e Corbusier. Em todo o sistema, não existe uma única placa informativa que não seja em cirílico, pelo que ficamos totalmente entregues à lógica da máquina (e ao nosso indispensável mapa do “guidebook”). Dentro de dois ou três dias, estamos adaptados. Não somos nós que dominamos o aparelho, mas ele que nos consegue manipular sem contratempos, empurrando-nos para dentro dos seus túneis, puxando-nos de uma escada rolante para outra, conduzindo todos os nossos passos e olhares, até saírmos do subsolo sob a roseta imensa de uma cúpula classicista rematada com uma estrela vermelha, frescos recordando a Grande Guerra Pátria, tanques, poetas e tractores, toda a parafernalia que se possa imaginar...


 


Do metro saímos para as imensidões urbanas da Praça Vermelha, da Avenida Tverskaia, da Biblioteca Lenine, do Estádio Central, da Universidade Lomonossov. Esta última deve deter quase todos os recordes. Não deve existir nenhum edifício maior e mais opressor, mais agressivo e mais implacavelmente planeado para impressionar. Mais uma vez, estamos no domínio do porn – e nisto, justiça seja feita a Corbusier, o gosto do arquitecto francês pouco teve a dizer. O edifício central, que todos conhecemos das fotografias, é só uma parte: um arranha-céus de 50 ou 60 andares, subindo para o éter por uma sucessão dramática de fachadas monumentais, estreitamentos e remates, coroado de uma gigantesca ponta dourada onde brilha a estrela dos cinco bicos. Mas à volta há todo um complexo versailliano de edifícios de cinco a dez andares (residências universitárias, institutos) directamente dependentes da torre central. O complexo revela todo o seu potencial assustador quando se passa por ele, num autocarro mal iluminado, durante a noite. Tudo é sombrio e apenas umas lâmpadas isoladas lançam, aqui e ali, um lusco-fusco amarelado sobre os passeios. À roda, os bosques de bétulas são negros e imaginam-se facilmente repletos de agentes secretos e outros assassinos oficiais.


 


Versailles vem talvez a propósito disto porque, conforme alguns se lembrarão, o complexo de Luís XIV surgiu algumas décadas depois da grande praça central de Isfaão, que visitei em Maio. Para mim, que pouco sei sobre as ligações efectivas entre os vários edifícios em questão, parece-me interessante discutir até que ponto este tipo de monumentalidade, muito diferente do das catedrais medievais, é “oriental”. Da Ásia é que teria passado à Europa, onde teria adiquirido algumas formas originais de “modernidade”, as quais teriam depois sido reexportadas para o Oriente. Será? E será que a grandeza tout court não deixaria, em tudo isto, de ser essencialmente uma característica cultural “oriental”?


 


O que é certo é que a Rússia possui um universo estético muito marcado pela ideia da grandeza, do “bolshoi”. Como dizia, tudo aqui é enorme, o país, a capital, os seus edifícios, os projectos políticos que encorparam, e nada disso teria sido possível, quer-nos parecer, num lugar em que não sobrevivesse, através dos séculos, uma sociedade marcada por certo despotismo e certa falta de direitos individuais. Havia na Hungria do tempo da cortina de ferro uma anedota muito popular que dizia:


 


“Como são os anões na União Soviética?” Ao que se respondia, com deleite:


“São gigantescos.”


 


Ironia ou não, é em Moscovo que o despotismo está posto a nu mais do que em nenhum outro lugar, porque as suas expressões estéticas (pelo menos as do século XX) se encontram despojadas da graça das arquitecturas da China, da Índia ou da França, e resumem-se inteiramente ao fantasma da “grandeur”. Basta pôr a Torre Eiffel ao lado da Lomonossov para perceber toda a diferença. Em França, muita coisa é grande no nome (La Grande Bibliothèque, Train à Grande Vitesse, Grande Nation), mas, na realidade, é “mignon” ao lado do que se passa um pouco mais a Leste. A coisa começa a avacalhar logo além do Elba, nas tristes vastidões da Prússia, claro. Mas – e sem que queiramos extrapolar para outros domínios da História, obviamente – nem mesmo os mais megalómanos planos para a Berlim imperial de Hitler chegam ao gigantismo daquilo que Estaline e Corbusier sonharam e realizaram em Moscovo. O que se planeou para Berlim no grande eixo Norte-Sul, ainda hoje visível como espaço vazio a atravessar a cidade, encontra-se realizado em Moscovo em dezenas de “Prospekts”.


 


Como se aguenta então passear por Moscovo hoje, tendo presentes as dolorosas conexões entre os fenómenos totalitários em questão? Apesar de tudo, parece haver facetas do urbanismo e da arquitectura soviéticos que contrabalançam um pouco os excessos estalinianos, principalmente se forem observados com alguma benevolência e o benefício da dúvida. Já nas décadas 60 e 70, o estilo e as estratégias adoptadas para impressionar “abriram-se” um pouco, deixando entrar mais ar e luz nas estruturas, e veiculando uma imagem “mais moderna” do que se imaginava ser o progresso da sociedade.


 


Um dos locais de Moscovo em que isso melhor se exprime (não tanto pela arquitectura, mas sim pela concepção dos espaços) é o Grande Parque das Exposições, gigantesco complexo ajardinado para onde eram encaminhados todos os visitantes da cidade. Acede-se ao complexo, depois de sair do metro, por um vasto areal em cujo centro se situa o monumento ao astronauta Gagarin: um gigantesco feixe de metal cintilante, rematado, a cem metros de altura, por uma cópia estilizada do foguetão que levou o primeiro homem ao espaço. Mais adiante, situa-se a entrada propriamente dita, um enorme arco de triunfo com baixos-relevos alusivos à economia e vida socialista. Hoje, está rodeado de vendedores de pipocas e de brinquedos “Made in Vietnam”, mas em tempos isto era o Alfa e Omega da grande utopia soviética.


 


Dentro do parque, uma sucessão de pavilhões onde se apresentavam as características e indústrias de cada república (desde a Arménia ao Turkmenistão) vem culminar no gigantesco pavilhão russo, qual cereja no bolo, jóia da coroa e remate da Criação. Era graças ao génio russo que os povos da União caminhavam, ineludivelmente, para o progresso (hoje, vendem-se ali bicicletas e fornos micro-ondas chineses). E seria graças a ele que tantos outros países ainda relutantes poderiam progredir e ultrapassar o “Ocidente”, se se deixassem “modernizar”.


 


No centro do complexo, reluz ainda hoje o Grande Fontanário das Nações, pirosíssimo amontoado de estátuas douradas e repuxos, por onde perpassa, por mais que tentemos resistir, uma sensação autêntica de paz, progresso e esperança no futuro (já que o presente era o que era, e ainda é o que é). É desconcertante. Perante o jogo das águas, sem dúvida devedor dos repuxos fascizóides do Trocadéro (da exposição universal de 1937, se bem me recordo), tudo parece, de repente, ganhar um outro sentido. De certa maneira, estamos no centro daquilo que foi um império na sucessão quase directa de Roma, com tudo o que isso pode ter de “bom” e de “mau”. Não só porque os czares pré-Romanov eram descendentes da última princesa de Constantinopla, fugida dos turcos em 1453, nem tão pouco pelo facto de muita da arquitectura do Parque ser de estilo romanizante. Mas sim, e esquecendo por um momento a farsa terrível que foi o comunismo real, porque tudo parece remeter para uma ideia de progresso que, quer queiramos, que não, nos está no sangue “enquanto ocidentais” – e se calhar também “enquanto orientais”.


 


A termos um mínimo de receptividade para o utopismo (o que, infelizmente, não nos imuniza contra o hard-core da monumentalidade e do gigantismo, antes pelo contrário), a reacção mais natural perante o Grande Fontanário das Nações (rodeado nos dias que correm por uma populaça pós-comunista alcoólica, alegre e inconsciente), será suspirarmos e sentirmos, por um momento, estarmos no Centro do Mundo. Ou, melhor, no lugar que a dado momento já quis ser o centro do mundo, e que, pela sua incrível e implacável eficácia estética e monumental, conseguiu por algum tempo convencer uma parte deste mundo de que efectivamente o era. Quantos revolucionários portugueses não terão passado, suspirando, por aqui e comparado o lugar à pieguice do Portugal dos Pequeninos? Quantos comunistas polacos, espanhóis, franceses, turcos, chineses ou afegãos?


 


Perante tanta confusão, pergunto-me que ideal é esse de sermos “o Ocidente”, e de sermos tão diferentes, para melhor ou pior, “do Oriente”? Em Moscovo, concerteza que tudo se baralha, e muito mais do que em qualquer seminário universitário dedicado a estas questões. A ideia de sermos melhores, conhecemo-la muito bem, mas já não sabemos se ela vem de sermos maiores ou mais pequenos, mais fortes ou mais espertos, melhores vencedores ou melhores perdedores. A ideia de sermos piores, por sua vez, cresce por aí em duas versões: aquela do Presidente Putin, que acha que a democracia “ocidental” é uma mariquice, e que existe uma interpretação russa mais firme, mais musclada e mais resistente à podridão. E aquela veiculada por muitos dos que participam hoje em dia no ICANAS, que (não sem se babarem com o terrível strip das meninas russas) amaldiçoam o “Orientalismo” do Ocidente – que neste caso inclui a Rússia – e contrapõem às nossas palestras académicas outras tantas, mais lamechas na minha visão, onde em vez de se acabar com um “thank you” ou um “spassiba”, se remata com um “please accept my loving feelings for all of you” ou “I embrace you all”. Aí estão eles, bloody Orientals, lançando-nos à cara o nosso (“ocidental”?) Jesús, remixed com Lao-Tse e o Buda, ainda por cima em interpretações tão ironicamente ocidentais, que já não conseguimos distinguir o sério da paródia, o “autêntico” do “remake”.


 


O que é pena em tudo isto, e não deixa de meter um pouco de nojo, é como hoje a própria ideia de “Oriente”, supostamente elaborada pelo “Ocidente” e criticada enquanto tal, nos é reenviada pelo próprio “Oriente”, e muitas vezes sem um único pestanejar, refeito dogma do outro lado do espelho e insuportável na sua pieguice.


 


A confusão já é muita, e se calhar devia ter-me ficado por descrever a vida nas ruas de Moscovo.


 


 


Zoltán Biedermann

publicado por Francisco Caramelo às 23:20

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