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Mai 04

Crónica da viagem de Zoltán Biedermann. 


O Oriente às vezes é um desespero, mas
no Oriente o desespero é às vezes um prazer.

Já que a narrativa da minha viagem está baralhada,
permito-me um interlúdio saído das experiências feitas
ontem e hoje em Teerão. O escopo era (e é) reunir umas
trinta reproduções de mapas antigos que se encontram na
cave de uma instituição auto-intitulada Centro de
Pesquisa e Documentação, vagamente ligada ao
Ministério dos Negócios Estrangeiros do Irão. Nada de
mais fácil, garantia-me o nosso coordenador local,
Mahmoud Taleghani, também conhecido entre nós, outros
participantes no colóquio, como Napoleão, dada a sua
estatura e os seus ares de ditador. Um tipo bem
porreiro, diga-se, que depois de viver quinze anos em
Paris, resolveu voltar ao seu país - sob a única
condição de, enquanto sociólogo, entregar todos os
seus dados primeiro aos mollahs.
Taleghani, dizia eu, o qual se conta entre os
reformadores de cá, prometeu-me que tudo se resolveria
num ápice, desde que ele falasse com o director do
Centro, seu amigo e correligionário liberal. Lá fomos
nós para a cave a fim de ver mapas e fazer a nossa
selecção - nós: eu e o Ali Goli, um tipo impecável
cujo vocabulário inglês é constituído de uma vintena
de palavras, entre as quais a mais usada é
"otherthings".

Feita a selecção, o dia de hoje esteve preenchido com a
questão da reprodução. Os dados a ter em conta eram:
1) há um scan alemão que já foi topo de gama, mas que
o foi numa altura em que não se faziam scans a cores.
2) os mapas estão encaixilhados de forma definitiva e
irreversível, com o que a fotografia se torna quase
inviável devido aos reflexos da luz. 3) o chefe da
cave está muito zangado connosco porque acha que
andamos a roubar os seus mapas; e 4) existe no Centro
uma máquina fotográfica digital e o homem dos scans
está disposto a tentar a sua sorte com ela.

A coisa passou-se da maneira seguinte.

8h30-9h45 - aquecimento geral e início da discussão
9h45 - primeira tentativa de scan a preto e branco
10h-10h30 - primeiros testes com a câmara digital. Tudo
parece correr bem. Tragicamente, o mau olhado de algum
funcionário anti-ocidental atinge o gabinete. A
máquina digital sofre uma morte súbita, a qual, como
quase todas as mortes, se me afigura definitiva. Os
iranianos não perderão a esperança até ao fim do dia
mas, como já se prevê, em vão.
10h30 - O conselho geral decide enviar um velhote que
anda a limpar os vidros para ir comprar umas pilhas
novas a meter na máquina digital.
Pausa de chá. Reparo que num canto da sala o
screensaver de um computador está a passar imagens
idílicas da América profunda: partidas de golfe e de
pesca no Nebraska, pássaros de Yellowstone, uma
companhia da USAF a embarcar para a guerra (título da
imagem "All aboard!"), mais peixinhos e mais pássaros.
Não estou a delirar. Ou ninguém reparou ainda, ou eles
estão-se mesmo nas tintas para toda esta cena dos
inimigos mortais.
11h30 - Enquanto nos debruçamos sobre a máquina
desastrada, o homem das pilhas chega, desesperado como
um herói de cinema neo-realista (o homem da bicicleta,
claro), explicando como se estivesse num tribunal
militar que não conseguiu encontrar nada. A fim de
evitar a sua execução sumária, promete voltar a
encetar outro périplo noutra direcção. Presume-se que
esteja neste momento a tentar passar a fronteira do
Azerbeijão.
12h - Napoleão e eu decidimos avançar com os scans a
preto e branco. Sempre serão um instrumento de
trabalho útil.
Paralelamente, Napoleão contacta os seus amigos de um
outro instituto ministerial. A câmara digital desse
instituto chega por volta das 12h30, mas é tão
sofisticada que ninguém lhe consegue mexer. Aliás, o
cartão de memória da máquina está cheio de fotos de
jardins e otherthings de fim-de-semana, aparentemente
ali esquecidas por algum alto funcionário. O embaraço
só se dissolve após o visionamento integral da
colecção.
13h-14h  - Almoço com o chefe da subsecção, pequeno
apparatchik parecido com o Roberto Benigni, mas muito
pouco engraçado. Discutimos a injustificável
independência de Timor. A nossa fuga para a sala dos
scans resulta apenas à terceira tentativa.
14h-15h - Feitos os scans, recomeça o drama do digital.
Os vidros reflectem a luz, o funcionário não consegue
focar a imagem, uma pilha de mapas rui subitamente
deixando-nos por momentos com o pavor do grande
terramoto – etc. otherthings, mais uma vez. Resolvo
tirar uma dúzia de slides com a minha máquina. Ficamos
todos muito felizes. Trocamos elogios barrocos com o
funcionário num duelo que ameaça não querer terminar.
O prazer foi todo meu, não, meu, não, meu. Quando
termina, chega outro copinho de chá. Às 16h30, a casa
fecha e somos libertados.

Corro, de táxi e metro (carruagens separadas para
homens e mulheres, pelo que nas estações anda tudo aos
encontrões a correr de um lado para o outro) para
conseguir entrada no Museu Nacional e constatar que,
de facto, quase tudo o que tinha e não tinha interesse
está hoje em Paris, Londres e Berlim.

Tudo menos eu, claro, que ainda calcorreio as avenidas
de Teerão por mais umas horas, bebendo batidos e
comendo kebabs. O Oriente às vezes é um desespero, mas
no Oriente o desespero é às vezes um prazer.


Zoltán Biedermann
 

publicado por Francisco Caramelo às 22:57

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