Pintura de Van Gogh, segundo gravura de Hiroshige, Paris, 1887.
«Compreendeis como sejam inúmeros os assuntos das estampas; e o que se pode dizer delas, como concepção, aplica-se a toda a arte nipónica. No entanto, o artista japonês escolhe de preferência motivos da vida real, é um realista; mostra-vos por exemplo um canto da paisagem da sua terra; ou uma cena da vida animal, servindo-lhe muitas vezes de herói o mais modesto ser, uma ave, um réptil, um insecto, um verme; ou um quadro da existência rotineira, um aldeão no amanho do campo, uma festa de chaya, uma musumé nas ocupações da casa, do jardim; ou um transe das suas febres de luta, em que se assaltam castelos, em que guerreiros se chacinam.
O pintor japonês não copia; recorda, invoca; assim é que, realista pelo assunto, é impressionista pelo processo. (...) Não copia; recorda, invoca; depois, materializa uma impressão, como se lhe gravou no cérebro. Daqui, a feição originalíssima da pintura japonesa, que ao europeu que não sabe ver, ou não quer ver, se afigura disparatada. Não há sombras; perspectivas raras, traços duros, por vezes, dos contornos; formas convencionais, simples esboços, para todos os narizes, para todos os olhos, para todas as bocas, das musumés. São então estes os japonese os tão apregoados cultores da verdade?
Sem dúvida, e nisto mesmo se denunciam, como ides ver. Tento explicar-me. Ora escutai-me: conheceis um indivíduo, um parente, vosso pai, suponho, que a vossa mente muitas vezes invoca; vêde-lo assim em pensamento, com uma sinceridade de linhas, que o hábito do convívio, o amor filial, vos gravaram no cérebro; mas concordai comigo que, nas vossas invocações, nunca vereis a sombra desse pai projectada no chão ou os jogos passageiros de luz na curva do seu chapéu alto. São detalhes secundários, escravos das leis físicas que nos regem, mas de que o moral se emancipa, por supérfluos. (...)
Compreendeis agora como a pintura japonesa, como a gravura japonesa, como a arte japonesa, enfim, se ofereçam curiosas ao estudo. Toda a manifestação artística, representando formas já assimiladas pelo cérebro de outrem, parece que deve impressionar-vos mais rapidamente, mais intensamente, visto poupar-vos ao vosso trabalho mental de assimilação; creio dever assim explicar-se o irresistível encanto que esta arte nipónica exerce sobre o europeu.
Agora posso falar-vos das audácias de traço destes obreiros, seguros da linha e ricos de imaginação. O desenho japonês quase que mexe. Roupas que ondulam; braços nus de musumés, adoráveis na forma, curvando-se, erguendo-se, consoante os misteres; dedinhos longos, terminando por unhas em amêndoa, contorcendo-se na originalíssima mímica de todos os instantes. Os samorais lutam corpo a corpo; eis por exemplo um que vem derrubar outro, assenta-lhe o pé descalço sobre o pescoço, prime a esmagá-lo, brande a espada nua, embebe-a no corpo agonizante, donde espirra o sangue em golfada; e são tais exageros deste músculos entumescidos, neste pé espalmado, que quase os vemos palpitando, latejantes, e quase esperamos ouvir o derradeiro rugido do que expira. Paisagens fantásticas; liberdades inauditas de ramarias, quiosques rendilhados, borboletas amando-se, as manchas escarlates dos peixes rompendo a serenidade verde dos lagos dos jardins, nuvens roxas aos saltos pelo espaço.
E é isto o Japão.»
Wenceslau de Morais, Traços do Extremo-Oriente