22
Dez 04
Procuremos acender uma vela em vez de amaldiçoar a escuridão.

(Provérbio chinês)
publicado por Francisco Caramelo às 22:53

rubljov.jpg


S. Miguel Arcanjo, pintura sobre madeira de Andrei
Rubliov, s. XV, Galeria Tretyakov, Moscovo


Conforme ficou evidente pelas duas crónicas anteriores, Moscovo tende, na sua grandeza e no seu totalitarismo arquitectónico, a provocar reacções de revolta e confusão. Três meses de distância ainda não me apaziguaram verdadeiramente. Por outro lado, é também verdade que essa máquina urbana é habitada por 10 milhões de pessoas, e que entre tanta gente é quase impossível que não se encontre algo de mais positivo, de mais idílico, de mais afável e humano. O problema é que, pelo menos inicialmente, não é nada fácil encontrar essa faceta boa da cidade. Desde já, o estrangeiro ocidental não é, em geral, visto com muita simpatia. Eu pelo menos vi-me rapidamente obrigado a enfiar a carapuça. As confrontações estúpidas e desnecessárias começavam logo de manhã no bar da “residencial” em que estávamos albergados, uma ex-residência universitária de 20 e tal andares a ser gerida em regime de “aproveita e foge com o dinheiro”, tão característico do mundo pós-comunista. Todas as manhãs, as empregadas do bar voltavam a fazer a mesma cara de desprezo e desentendimento face a qualquer tentativa de pedido de pão, manteiga, doce e chá, deixando-nos depois esperar vinte, trinta minutos até trazerem um bule de água suja e umas bolachas ridículas, piores que em qualquer estação de serviço espanhola. Os clientes russos, esses, eram servidos com alguma normalidade. Para nós, por contraste, a mensagem veiculada era clara e simples: elas não estavam aí para fazer fretes, ainda por cima para gente que vinha de países onde tudo são facilidades. Segundo, também na rua, e nomeadamente nos transportes públicos, a minha presença foi muitas vezes objecto de irritação. Por exemplo numa manhã em que apanhei o trólei e me sentei, sem saber, no lugar da revisora. O que se seguiu, os gritos, os gestos, o desprezo nas caras imóveis dos restantes passageiros, é bem capaz de ter sido o pior bafo de hostilidade que já enfrentei em toda a minha vida. Ainda hoje me arrepio com essa memória, a despeito de todas as tentativas de racionalização. Suponho que, talvez, essa antipatia – que naquele momento se transformou em catarse colectiva de todo um trólei – resulte de um conjunto de terríveis frustrações. Com o império perdido (mas o sonho imperial bem vivo, com Putin na sucessão de Lenine), o capitalismo triunfante, as tremendas dificuldades da vida quotidiana. Alguém que vem fazer turismo nos transportes públicos da capital russa é difícil de suportar para muitos moscovitas. Durante quatro décadas, os filhos recrutas desses homens e mulheres faziam o que queriam nos países da Europa de Leste. Agora, vêm para Moscovo uns rapazolas “amerikankys” e semelhantes, são corteses e sorridentes, o que vem a ser isto?! E tum. Mas o “topos” da carapaça dura que esconde um coração de manteiga não deixa também de se verificar – ainda que não desde o primeiro momento. Foi preciso procurá-lo. Durante toda aquela semana, não parei de pensar: mas onde estará aquela bela “alma do povo russo” de que a minha mãe e o meu irmão sempre me falaram? Alma sofredora, mas generosa, magoada, mas benevolente? A imagem que eu tinha na cabeça era a de Jeanna, amiga arménia e moscovita do meu tio László, inteligente, sensível e decidida, trazida para o foro da nossa família nos dourados anos 60, no âmbito do turismo organizado que então começou a florescer entre os países socialistas. Onde estava essa gente? Seria possível que ela tivesse sido aniquilada no frio social do pós-comunismo, depois de aguentar aquelas décadas todas de estupidez e terror? Com efeito, o choque migratório do século XX ameaçou em Moscovo submerger os aspectos mais simpáticos e menos totalitários da velha cidade oitocentista: os seus passeios públicos, os seus salões, as suas pastelarias finas, os seus museus de arte, as suas residências de poetas e romancistas... Depois, os anos que se seguiram à (aparente) mudança de regime varreram muito do que ainda tinha conseguido sobreviver, aplicando a tudo e todos a lógica do proveito imediato, da lei do mais forte. Hoje, é esta a tónica que domina muito da paisagem urbana. Néons publicitários a tapar as mais belas e degradadas fachadas românticas, casinos e bares de alterne abertos todo o dia, MacDonald’s e lojas do mesmo género a cada esquina no centro; e tudo isso em versões mais piegas, mais rascas nas restantes zonas. À saída de cada estação de metro aglomerações assustadoras de boticas que vendem álcool em todas as cores e feitios, e os inevitáveis batalhões de gente bêbeda e acabada. Os momentos de verdadeira simpatia acabaram por ser mesmo muito poucos, mas foram tanto mais memoráveis. Recordo-me, mais que tudo, de uma manhã passada no antigo mosteiro de Novodevichy, que ficou preservado na orla da cidade antiga. Estava um dia radiante com aquele céu azul que mesmo nos filmes soviéticos antigos parece ter cor. Perante esse azul, as cúpulas douradas das igrejas e capelas resplandeciam orgulhosas e as folhas prateadas das bétulas dançavam ao vento fresco e perfumado que poderia ser de uma manhã de primavera (os verões na Rússia podem ser quentes, mas a partir de meados de Agosto as paisagens lacustres e os bosques que cercam Moscovo lançam a sua frescura para dentro da cidade). Ao sentar-me num canto abandonado pelos turistas, numa relva densa e impecável, encostado ao tronco de uma bétula e olhando o alegre amontoado de torres e cúpulas das várias igrejas renascentistas e barrocas à minha volta, senti surgir em mim o canto das “Vésperas” de Rachmaninov. Podia não passar de uma lamechice, mas acabou por ser um momento mágico. Nos caminhos sinuosos que ligam as igrejas e as casas, passando por pedaços de relva semeados de túmulos de pessoas famosas, caminhavam gatos, padres ortodoxos, freiras e turistas russos com uma reverência calma e majestosa. Quando os grupos italianos e alemães se desvaneciam, frenéticos e barulhentos, pelo enorme portão de entrada, o recinto parecia mergulhar na sua própria História. Sem polícias secretas, sem torturas e outros terrores, só pela beleza dum cântico ortodoxo, duns versos gravados no túmulo de um poeta, do doce e algo trôpego murmúrio russo de um guia turístico rodeado de reformados prestes a desembolsar o seu farnel, o qual iriam comer sentados à minha volta. Não sei se estas memórias me redimem das outras, tão duras e desconcertantes. Mas quando penso em Moscovo agora, prefiro pensar num povo que adora gelados com sabor a frutos silvestres do que numa cambada de gente conservada em álcool. Prefiro a sombra da bétula à sombra do trólei, a tarte de creme de amoras comida nas resplandecentes arcadas classicistas dos armazéns GUM e as deliciosas batatas assadas das roulotes nas saídas suburbanas do metro aos biscoitos da minha residencial; a classe e a simpatia dalgumas e dalguns colegas orientalistas moscovitas à pieguice das falsas bailadeiras da universidade privada; o deslumbre dos ícones de Andrei Rubljov ao lixo patrioteiro das televisões estatais; a simpatia dos restaurantes “Mu-mu”, que têm por tema a vida campestre e são o principal paradeiro dos estudantes nas horas vagas, ao horror dos palácios soviéticos com os seus mármores e os seus apparatchiks; o sorriso das crianças a brincar à volta do “Grande Fontanário das Nações” à arrogância dos maffiosos que aterrorizam os “Prospekts” com os seus carrões e que são os principais interlocutores do “Ocidente” naquele país. Por isso, se tivesse de resumir numa palavra Moscovo, escolhia, fechando ambos os olhos e pondo de lado com muita força as recordações mais amargas, “amoras”: um frutinho típico dos bosques à volta de Moscovo, objecto de muito carinho (com famílias inteiras a procurá-lo aos fins-de-semana, como nós fazíamos quando éramos pequenos, e ainda fazemos na Hungria e na Alemanha) e saber-fazer (são mesmo poucas as coisas mais deliciosas que uma tarte de creme de amoras com natas frescas). Fechando os olhos, as amoras recordam-me outros frutos silvestres que acompanham as frugais refeições tradicionais russas (a sopa de beterravas, os peixes em vinagre, o pão pesado e escuro) e nos fazem lembrar como aquele país se estende, por infinitos bosques, lagos, serras e tundras, desde o Báltico até aos últimos confins da Ásia, sendo, mais que “Oriente”, um “Norte” extensíssimo, uma faixa de terra que, além de lançar, de tempos em tempos, o terror sobre os seus vizinhos, também os protege (nos protege) do frio polar que absorve por nós. Enquanto andei por Moscovo, tive quase a certeza de que nunca lá iria voltar. Agora já não sei. Penso que é bom passarmos por Moscovo antes de defendermos com demasiada cegueira alguns dos nossos sonhos, mas também antes de mandarmos para o cemitério das ideias alguns outros. Que cada um escolha por si, eu arrumei algumas coisas depois de deixar-mas desarrumar.


 


Zoltán Biedermann

publicado por Francisco Caramelo às 21:20

Em vão o menino tentava


Segurar uma gota de orvalho


Entre o polegar e o indicador


 


Imperfeito este mundo


E contudo


Recoberto de flores

publicado por Francisco Caramelo às 10:26

19
Dez 04

Saiu o nº 1 (já havia saído um número experimental em Abril) do Boletim de Estudos Orientais Expresso Oriente. Estão de parabéns os alunos das áreas opcionais de História da Antiguidade Oriental e de História da Ásia da licenciatura em História da FCSH da UNL, que não deixaram que sucumbisse, mercê do seu grande esforço, este interessante projecto.


Neste número, podem ler-se três artigos:


• A escrita hieroglífica (Celina Claro e Daniel Nunes – alunos da licenciatura)


• O Cosmopolitismo Tang (Isabel Almeida – mestranda de História das Religiões)


• A guerra na Mesopotâmia: o recenseamento e a mobilização em Mari (Marcel Luís Paiva do Monte – aluno da licenciatura).


Podemos também encontrar recensões bibliográficas e recensões sobre sítios na Internet, designadamente sobre este blog, bem como notícias sobre iniciativas e actividades ligadas à orientalística. Vale a pena ler o boletim e apoiar este projecto.

publicado por Francisco Caramelo às 12:21

14
Dez 04
 

Uma das primeiras coisas que precisamos de meter na cabeça quando tentamos imaginar Moscovo é que tudo é enorme. Corbusier, o herói daquilo que nós por convenção pensamos ser a “modernidade ocidental”, fez em Moscovo aquilo que não podia fazer em casa, onde, apesar de tudo, já existia um mínimo de normalidade cívica e de participação democrática nas decisões. Na capital russa, a única coisa que não o deixaram arrasar foi o centro histórico da cidade, e o arquitecto bem que protestou. O Kremlin, o Bolshoi, a Tverskaia e os bairros mais imbuídos do poder czarista não podiam deitar-se abaixo, nem mesmo no mais horripilante auge do domínio estaliniano, nas décadas de 30 e 40.


 


Restava todo o resto, e foi mesmo abaixo. Ao longo de sete décadas de economia planificada, Moscovo absorveu, com as suas gigantescas áreas fabris e o seu não menos gigantesco aparelho burocrático, pessoas de todo o império até chegar, nos anos 70, aos dez milhões. Hoje, com as megápolis do terceiro mundo a meter no bolso qualquer Tóquio ou Nova Iorque, já não parece muito. Mas na altura, era o símbolo de que, no grande xadrez político internacional, a capital soviética era um dos centros potenciais do sistema-mundo. Perante o afluxo das pessoas que fugiam dos campos e das kolkhozes, o governo chegou mesmo a instaurar cotas de imigração para a capital, não conseguindo evitar tudo aquilo que isso acarreta também no imaginário ocidental dos nossos dias: imigrantes ilegais, casamentos brancos etc.


 


Meter dez milhões de pessoas em casas novas não é para qualquer um, mas Corbusier deu a receita: fazem-se caixotes de dez a vinte andares e organizam-se em unidades de urbanização plantadas no meio da paisagem. Depois, ligam-se as unidades umas às outras por artérias onde as pessoas passam tanto tempo a circular de um lado para o outro (por exemplo entre a casa e o trabalho) que o problema do activismo político nem sequer se coloca (ninguém tem tempo para conspirar). As artérias consistem em gigantescas vias multiuso que se dirigem, num esquema radial, para o centro político: o buraco da tarántula onde, na realidade, ninguém quer cair. Cada uma das avenidas ou Prospekts inclui uma dezena de faixas rodoviárias, áreas verdes, largos passeios pedestres e toda a gama de infraestruturas de transporte colectivo socialista: trolleys e autocarros fabricados na Hungria (os mesmos veículos marca Ikarus circulam ainda hoje em Budapeste, Teerão e Vladivostok), eléctricos e, claro, o famoso Metro.


 


Contrariamente a alguns monumentos míticos onde o visitante apanha uma grande desilusão no primeiro momento (por exemplo o próprio Metro de Paris, “capital do século XIX”, lento que nem um caracol reumático) o Metro de Moscovo corresponde desde o início a todas as expectativas. É enorme, é muito, muito barulhento, e incrivelmente eficiente, circulando nas horas de ponta a um ritmo de dois comboios por minuto e transportando o maior número de passageiros de qualquer sistema do planeta. Constitui uma mistura muito poderosa de grande produção industrial (siderurgia siberiana, mecânica pesada moscovita, pedraria uraliana empregues nos túneis e nos comboios) com o gosto decorativo tardo-burguês, art-déco fascizoide e modernista piroso das décadas de 30 a 60, na decoração das estações. Curiosamente, poucos elementos aparentam ser estalinistas tout-court, mas isso é porque o estalinismo na arquitectura é uma mistela de elementos cuja única obrigação, para fazerem parte do conjunto, é serem grandes e terem pretensões monumentais.


 


Para captar o “charme” da coisa, o melhor é mergulhar nas multidões e deixar-se arrastar pela corrente, qual corpúsculo nas veias da grande capital imaginada por Estaline e Corbusier. Em todo o sistema, não existe uma única placa informativa que não seja em cirílico, pelo que ficamos totalmente entregues à lógica da máquina (e ao nosso indispensável mapa do “guidebook”). Dentro de dois ou três dias, estamos adaptados. Não somos nós que dominamos o aparelho, mas ele que nos consegue manipular sem contratempos, empurrando-nos para dentro dos seus túneis, puxando-nos de uma escada rolante para outra, conduzindo todos os nossos passos e olhares, até saírmos do subsolo sob a roseta imensa de uma cúpula classicista rematada com uma estrela vermelha, frescos recordando a Grande Guerra Pátria, tanques, poetas e tractores, toda a parafernalia que se possa imaginar...


 


Do metro saímos para as imensidões urbanas da Praça Vermelha, da Avenida Tverskaia, da Biblioteca Lenine, do Estádio Central, da Universidade Lomonossov. Esta última deve deter quase todos os recordes. Não deve existir nenhum edifício maior e mais opressor, mais agressivo e mais implacavelmente planeado para impressionar. Mais uma vez, estamos no domínio do porn – e nisto, justiça seja feita a Corbusier, o gosto do arquitecto francês pouco teve a dizer. O edifício central, que todos conhecemos das fotografias, é só uma parte: um arranha-céus de 50 ou 60 andares, subindo para o éter por uma sucessão dramática de fachadas monumentais, estreitamentos e remates, coroado de uma gigantesca ponta dourada onde brilha a estrela dos cinco bicos. Mas à volta há todo um complexo versailliano de edifícios de cinco a dez andares (residências universitárias, institutos) directamente dependentes da torre central. O complexo revela todo o seu potencial assustador quando se passa por ele, num autocarro mal iluminado, durante a noite. Tudo é sombrio e apenas umas lâmpadas isoladas lançam, aqui e ali, um lusco-fusco amarelado sobre os passeios. À roda, os bosques de bétulas são negros e imaginam-se facilmente repletos de agentes secretos e outros assassinos oficiais.


 


Versailles vem talvez a propósito disto porque, conforme alguns se lembrarão, o complexo de Luís XIV surgiu algumas décadas depois da grande praça central de Isfaão, que visitei em Maio. Para mim, que pouco sei sobre as ligações efectivas entre os vários edifícios em questão, parece-me interessante discutir até que ponto este tipo de monumentalidade, muito diferente do das catedrais medievais, é “oriental”. Da Ásia é que teria passado à Europa, onde teria adiquirido algumas formas originais de “modernidade”, as quais teriam depois sido reexportadas para o Oriente. Será? E será que a grandeza tout court não deixaria, em tudo isto, de ser essencialmente uma característica cultural “oriental”?


 


O que é certo é que a Rússia possui um universo estético muito marcado pela ideia da grandeza, do “bolshoi”. Como dizia, tudo aqui é enorme, o país, a capital, os seus edifícios, os projectos políticos que encorparam, e nada disso teria sido possível, quer-nos parecer, num lugar em que não sobrevivesse, através dos séculos, uma sociedade marcada por certo despotismo e certa falta de direitos individuais. Havia na Hungria do tempo da cortina de ferro uma anedota muito popular que dizia:


 


“Como são os anões na União Soviética?” Ao que se respondia, com deleite:


“São gigantescos.”


 


Ironia ou não, é em Moscovo que o despotismo está posto a nu mais do que em nenhum outro lugar, porque as suas expressões estéticas (pelo menos as do século XX) se encontram despojadas da graça das arquitecturas da China, da Índia ou da França, e resumem-se inteiramente ao fantasma da “grandeur”. Basta pôr a Torre Eiffel ao lado da Lomonossov para perceber toda a diferença. Em França, muita coisa é grande no nome (La Grande Bibliothèque, Train à Grande Vitesse, Grande Nation), mas, na realidade, é “mignon” ao lado do que se passa um pouco mais a Leste. A coisa começa a avacalhar logo além do Elba, nas tristes vastidões da Prússia, claro. Mas – e sem que queiramos extrapolar para outros domínios da História, obviamente – nem mesmo os mais megalómanos planos para a Berlim imperial de Hitler chegam ao gigantismo daquilo que Estaline e Corbusier sonharam e realizaram em Moscovo. O que se planeou para Berlim no grande eixo Norte-Sul, ainda hoje visível como espaço vazio a atravessar a cidade, encontra-se realizado em Moscovo em dezenas de “Prospekts”.


 


Como se aguenta então passear por Moscovo hoje, tendo presentes as dolorosas conexões entre os fenómenos totalitários em questão? Apesar de tudo, parece haver facetas do urbanismo e da arquitectura soviéticos que contrabalançam um pouco os excessos estalinianos, principalmente se forem observados com alguma benevolência e o benefício da dúvida. Já nas décadas 60 e 70, o estilo e as estratégias adoptadas para impressionar “abriram-se” um pouco, deixando entrar mais ar e luz nas estruturas, e veiculando uma imagem “mais moderna” do que se imaginava ser o progresso da sociedade.


 


Um dos locais de Moscovo em que isso melhor se exprime (não tanto pela arquitectura, mas sim pela concepção dos espaços) é o Grande Parque das Exposições, gigantesco complexo ajardinado para onde eram encaminhados todos os visitantes da cidade. Acede-se ao complexo, depois de sair do metro, por um vasto areal em cujo centro se situa o monumento ao astronauta Gagarin: um gigantesco feixe de metal cintilante, rematado, a cem metros de altura, por uma cópia estilizada do foguetão que levou o primeiro homem ao espaço. Mais adiante, situa-se a entrada propriamente dita, um enorme arco de triunfo com baixos-relevos alusivos à economia e vida socialista. Hoje, está rodeado de vendedores de pipocas e de brinquedos “Made in Vietnam”, mas em tempos isto era o Alfa e Omega da grande utopia soviética.


 


Dentro do parque, uma sucessão de pavilhões onde se apresentavam as características e indústrias de cada república (desde a Arménia ao Turkmenistão) vem culminar no gigantesco pavilhão russo, qual cereja no bolo, jóia da coroa e remate da Criação. Era graças ao génio russo que os povos da União caminhavam, ineludivelmente, para o progresso (hoje, vendem-se ali bicicletas e fornos micro-ondas chineses). E seria graças a ele que tantos outros países ainda relutantes poderiam progredir e ultrapassar o “Ocidente”, se se deixassem “modernizar”.


 


No centro do complexo, reluz ainda hoje o Grande Fontanário das Nações, pirosíssimo amontoado de estátuas douradas e repuxos, por onde perpassa, por mais que tentemos resistir, uma sensação autêntica de paz, progresso e esperança no futuro (já que o presente era o que era, e ainda é o que é). É desconcertante. Perante o jogo das águas, sem dúvida devedor dos repuxos fascizóides do Trocadéro (da exposição universal de 1937, se bem me recordo), tudo parece, de repente, ganhar um outro sentido. De certa maneira, estamos no centro daquilo que foi um império na sucessão quase directa de Roma, com tudo o que isso pode ter de “bom” e de “mau”. Não só porque os czares pré-Romanov eram descendentes da última princesa de Constantinopla, fugida dos turcos em 1453, nem tão pouco pelo facto de muita da arquitectura do Parque ser de estilo romanizante. Mas sim, e esquecendo por um momento a farsa terrível que foi o comunismo real, porque tudo parece remeter para uma ideia de progresso que, quer queiramos, que não, nos está no sangue “enquanto ocidentais” – e se calhar também “enquanto orientais”.


 


A termos um mínimo de receptividade para o utopismo (o que, infelizmente, não nos imuniza contra o hard-core da monumentalidade e do gigantismo, antes pelo contrário), a reacção mais natural perante o Grande Fontanário das Nações (rodeado nos dias que correm por uma populaça pós-comunista alcoólica, alegre e inconsciente), será suspirarmos e sentirmos, por um momento, estarmos no Centro do Mundo. Ou, melhor, no lugar que a dado momento já quis ser o centro do mundo, e que, pela sua incrível e implacável eficácia estética e monumental, conseguiu por algum tempo convencer uma parte deste mundo de que efectivamente o era. Quantos revolucionários portugueses não terão passado, suspirando, por aqui e comparado o lugar à pieguice do Portugal dos Pequeninos? Quantos comunistas polacos, espanhóis, franceses, turcos, chineses ou afegãos?


 


Perante tanta confusão, pergunto-me que ideal é esse de sermos “o Ocidente”, e de sermos tão diferentes, para melhor ou pior, “do Oriente”? Em Moscovo, concerteza que tudo se baralha, e muito mais do que em qualquer seminário universitário dedicado a estas questões. A ideia de sermos melhores, conhecemo-la muito bem, mas já não sabemos se ela vem de sermos maiores ou mais pequenos, mais fortes ou mais espertos, melhores vencedores ou melhores perdedores. A ideia de sermos piores, por sua vez, cresce por aí em duas versões: aquela do Presidente Putin, que acha que a democracia “ocidental” é uma mariquice, e que existe uma interpretação russa mais firme, mais musclada e mais resistente à podridão. E aquela veiculada por muitos dos que participam hoje em dia no ICANAS, que (não sem se babarem com o terrível strip das meninas russas) amaldiçoam o “Orientalismo” do Ocidente – que neste caso inclui a Rússia – e contrapõem às nossas palestras académicas outras tantas, mais lamechas na minha visão, onde em vez de se acabar com um “thank you” ou um “spassiba”, se remata com um “please accept my loving feelings for all of you” ou “I embrace you all”. Aí estão eles, bloody Orientals, lançando-nos à cara o nosso (“ocidental”?) Jesús, remixed com Lao-Tse e o Buda, ainda por cima em interpretações tão ironicamente ocidentais, que já não conseguimos distinguir o sério da paródia, o “autêntico” do “remake”.


 


O que é pena em tudo isto, e não deixa de meter um pouco de nojo, é como hoje a própria ideia de “Oriente”, supostamente elaborada pelo “Ocidente” e criticada enquanto tal, nos é reenviada pelo próprio “Oriente”, e muitas vezes sem um único pestanejar, refeito dogma do outro lado do espelho e insuportável na sua pieguice.


 


A confusão já é muita, e se calhar devia ter-me ficado por descrever a vida nas ruas de Moscovo.


 


 


Zoltán Biedermann

publicado por Francisco Caramelo às 23:20

06
Dez 04


Dia de primavera -


A porta das traseiras


Abre-se sozinha


 


Do nariz do Grande Buda


Voa


Uma andorinha


 


(Issa Kobayashi, Primeira Neve, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002)

publicado por Francisco Caramelo às 14:05

03
Dez 04



Também estive no São Luís, no penúltimo dia da Japan’s Week. Gostei muito da mostra de aspectos do Japão tradicional, particularmente do enérgico grupo dos tambores Taiko - Matsukawa Kazunomiya Taiko. Impressionante.  

publicado por Francisco Caramelo às 09:19


Está um sábado chuvoso na Penha de França, e recordo-me vagamente de ter passado, nos meados de Agosto deste ano, uma semana em Moscovo. De lá, regressei a Budapeste, e dali a Lisboa, passando ainda por Utrecht na Holanda. Pelo que as impressões ficaram soterradas e quase todas por contar.

O que me traz agora as memórias ao de cima é uma impressão fresca, colhida no lusco-fusco de um espectáculo um tanto ou quanto bizarro inserido nas manifestações culturais da Japan Week. A abrir o espectáculo de quinta-feira, uma dona de casa japonesa, dos seus sessenta e tal anos, vestia, no palco do São Luiz, com grande cerimónia o seu kimono. Começando pelo camisão propriamente dito, a senhora foi-se depois enrolando em faixinhas e pedaços de seda de várias cores, não sem interromper numerosas vezes o curso natural do seu vestir com gestos delicados, pequenos passos bem contidos (ai, as meiinhas brancas com o dedo grande do pé separado dos outros!) e voltinhas um pouco descoordenadas, mas de uma honestidade constrangedora.

Não fui capaz de deixar de pensar, enquanto o espectáculo decorria e me fazia transpirar por todos os poros, que estávamos a assistir a um strip-tease ao contrário – aberração folclórica que parecia, diga-se também, rimar à perfeição com o público do teatro municipal. Seja como for, lembrei-me de Moscovo, e mais concretamente do espectáculo de abertura do congresso a que lá fui assistir: o 37° Congresso Mundial de Estudos Orientais, hoje apelidado de ICANAS – International Congress of Asian and North African Studies, para contornar as inconveniências decorrentes do uso da palavra Oriente nos meios académicos do Ocidente – e do próprio.

O strip-tease (supostamente umas danças de ventre) a que assisti em Moscovo era, contrariamente ao de Lisboa, (quase) verdadeiro. Isto é, seguia a ordem natural das coisas: para seduzir os visitantes do congresso, as jovens estudantes da Universidade de Estudos Orientais (sic) de Moscovo – recém-criada instituição privada dirigida pelo ex-director do Instituto Soviético de Estudos Estratégicos, Professor Vitaly Vassilievitch Naumkin – despiam-se em vez de se vestir. Todos sabem o que isso implica, pelo que não entro em detalhes. Voltinhas, bundas e peitos a abanar, olhares húmidos de sedução lançados para a plateia sem olhar a meios. Como é evidente, nada ficou à vista propriamente dita, porque estávamos num evento oficial. Mas na realidade tudo estava bem perto do soft-porn, porque – os mais grunhos já adivinham o que vou dizer – porque elas eram russas, e portanto não podiam deixar de comportar-se assim.

Estávamos, entenda-se, no rescaldo da abertura solene do 37° ICANAS, ocorrida no grand central hall do faraminoso edifício tardo-soviético da Academia das Ciências da Rússia, um gigantesco bolo de betão, mármore e vidros espelhados cor-de-cobre, plantado no alto de uma ravina do rio Moskva, em posição de domínio explícito (quase se diria: porn) sobre o Centro da cidade. No topo da torre principal do edifício, com os seus trinta e cinco andares, uma gigantesca estrutura de metal (mistura de op-art e construtivismo russo em interpretação pimba), ela própria alta de pelo menos cinco andares, parece ainda hoje querer captar as ondas cósmicas de todo o universo, com uma eficácia científico-socialista que nenhum falo pré-histórico, nenhum linga indiano nem nenhuma Torre Eiffel burguesa alguma vez poderia alcançar.

Dizia eu que o nosso strip vinha no seguimento de uma cerimónia de abertura altamente oficial, em que um dos 23 (!) grandies a fazerem discursos solenes foi nada mais, nada menos do que o Académico Primakov. Junte-se em abono da verdade que a nossa festa já decorreu noutro edifício, um pouco (pouquinho) menos espalhafatoso, mais periférico, cuja principal característica era possuir um par de Twin Towers final-anos-80, uma das quais sem recheio, isto é, com as janelas e todo o resto por colocar, bem dentro do estilo do que se via na Croácia imediatamente depois da guerra de secessão. Ao lado das torres, situa-se um enorme caixote igualmente tardo-soviético com dezenas (pensando um pouco, não deveriam ser menos de uma cententa) de salas de conferências, e quilómetros de corredores revestidos de mármore cinzento-claro, com intermináveis alcatifas corridas pelo chão. Mais que kafkianos, os corredores eram de facto kubrikianos. Ficava-se à espera de aparecer, a qualquer momento, um velho zombie apparatchik a arrombar umas das portas de madeira cor-de-mel com um machado Made in USSR e gritar “morte ao orientalistas ocidentais”! – note-se que quase todo o congresso foi em russo, e que não houve uma única conferência com tradução.

Mas o ponto a que queria chegar a respeito das várias modalidades de strip (e não de rip) era outro. É que o strip que nos foi oferecido como brinde de boas-vindas pelas jovens pin-ups académicas (e futuras matriochkas rechonchudas, embedidas em Vodka como quase todas as russas reais que vimos nas ruas) era Oriental. Quer isto dizer que, para retomarmos um pouco o fio à meada, antes de fazerem o seu show, as miúdas foram cobrir-se de vestimentas orientais atrás de um biombo no hall do edifício. Talvez o fizessem com menos cerimónia do que a japonesa do São Luiz, mas no fundo, parece-me, estavam a fazer algo de muito semelhante. Pouco importa que fossem Sheherezades postiças e não verdadeiras (em que taberna do Califado é que as dançarinas eram loiras e magras?), porque a nossa japonesa também não saía da Kyoto do século XVIII: era provavelmente a esposa de um funcionário cinzentão de uma companhia de seguros de Tokyo. Ao cobrirem os seus corpos da parafernalia oriental mais óbvia – véus de seda muito coloridos, tops e cuequinhas tipo mini a transparecer, faixinhas e brilho no cabelo – as nossas colegas russas tomavam um disfarce que não se poderia inserir com mais perfeição na categoria do folclórico, ainda que acrescida de uns toques pós-modernos, decorrentes da premente realidade que é a globalização.

Além das dançarinas, havia um impressionante machão moreno do Uzbequistão a interpretar canções “populares” da sua terra, a pender para o nosso pimba, mas com elementos techno bastante vanguardistas na sua selvajaria (no bis, acabou por se ver envolvido com duas das Sheherezades). Havia também uma russa cinzentinha e magrinha com um ar muito tímido, género intelligentsia (ou ainda aristocrata triste, chorando a morte das suas cerejeiras, só lhe faltando suicidar-se para dar jus a mais um mito russo) a fazer um karaoke de J-pop totalmente desafinado, na companhia de uma japonesa (talvez) autêntica. Havia também umas turkmenas a apresentar coisas do seu país, e depois havia nós, o público. Nomeadamente eu e um colega japonólogo húngaro, a tentarmos levar a coisa para o lado dos risos. E os outros, a babarem-se todos e completamente. Graças a Deus, o camarada Primakov já não estava connosco.

Enquanto tudo isto decorria, talvez (certamente!) ninguém tivesse a distância necessária para reflectir sobre o filme em que estávamos a entrar. Um congresso na Rússia (este foi o meu primeiro, mas dizem-me que são todos assim) é uma aventura que nos prende muito a atenção às coisas mais práticas – um pouco, diga-se, à maneira como a vida das pessoas no socialismo real se resumia, em boa parte, a uma sucessão de problemas prosaicos do género: arranjar papel higiénico; arranjar ovos e açúcar; arranjar gasolina; arranjar atacadores; arranjar Vodka para esquecer o resto.

Nós, por exemplo, começámos por nos preocupar um pouco com o facto de não existir, nas vésperas do congresso, nenhum programa para as 1200 conferências previstas – que iam, conforme iríamos descobrir algumas horas depois do strip, desde o mais obscuro positivismo académico de “On the positive role of dogs in Sufi litterature”, “On the decipherment of the hieroglyphic script of the Bianili-Urartu-Ararat kingdom” ou “Chagdorzab’s letters as a major epistolary source for studying the Kalmyck of the XVIIIth century” (tudo em russo, claro) até coisas como “Culture must return into day-to-day’s life (including politics) without delay to save civilisation” (isto é um título) ou “Spirituality/Culture – Civilisation. The Dimension of duality, bipolarity in the unity of spirit and matter leading to: spirit in matter” (isto é outro título; confesso que não fui ouvir).

Se alguém quiser divertir-se com 89 páginas de bábás deste género, emprestarei com todo o gosto o meu programa, saído do prelo pelas onze da manhã do primeiro dia das conferências – e onde o meu nome, como o de muitos (he!) outros, simplesmente não constava. Recordo-me de encontrar num corredor, enquanto estava a tentar tratar de me porem no programa, um professor japonês que, sendo incapaz de pedir o que quer que fosse a uma das meninas russas da organização (uma delas tinha-nos enfeitiçado com a sua dança dos véus, obviamente) ia já, quebrantado e triste depois de não ter achado o seu nome no programa, a caminho do aeroporto.

Convenhamos que foi preciso algum espírito empreendedor para ultrapassar o impasse. Durante dois dias, esperei com sinceridade que me colocassem nalguma versão revista do programa (eu devia estar mesmo a sonhar). Depois, por alguma intuição (quiçá devesse apresentar, no ICANAS 38, a realizar-se em 2006 em Istanbul!, uma conferência sobre o tema “The semantic field of the word ‘intuition’ in multi-identitarian contexts of contemporary Lisbon – a case study”) percebi o que tinha a fazer. Era tão simples, mas a vida no Ocidente (ah!) às vezes faz-nos esquecer estas tácticas mais básicas da sobrevivência num meio hostil: entrei numa sala onde estavam em andamento as conferências da secção “Religion”, que eram muitas (percebi depois da sessão que praticamente toda a audiência eram conferencistas). Murmurei umas coisas ao ouvido do chairman, o ilustre Professor Sh. Bira de Ulan-Bator. Este, sem perceber muito bem de que é que a minha proposta tratava em concreto, percebeu perfeitamente o essencial (lembre-se que eles na Mongólia aturaram o melhor dos sistemas políticos durante umas décadas muito largas): este jovem está a querer falar. Vamos então deixá-lo apresentar o seu paper, por exemplo entre “The Indian response to the Patheistic of Ibn al-Arabi” e “The Anthiochian Orthodox patriarchy – speciality of creation and a history” (tudo em russo, claro).

Lá falei sobre os meus cristãos de Socotorá (em inglês, perante uma audiência de todo incrédula), e com o entusiasmo da coisa ainda fui inventar outra conferência, sobre as fontes portuguesas para a história da Ásia no século XVI, que apresentei noutra sessão de uma outra secção. Não fosse a tentação de ir embrenhar-me na cidade em vez de aturar mais estas chatices, concerteza que ia fazer mais algumas intervenções. Mas felizmente, Moscovo estava aí à minha espera, e o chão de um dos próximos corredores que pisei levou-me para fora do palácio do saber. Levou-me aliás quase directamente até uma das estações do mais famoso Metro do mundo, começado em 1935 por um dos mais tarados “déspotas orientais” de todos os tempos, homem (monstro?) de quem ainda teremos ocasião de falar.

Zoltán Biedermann
publicado por Francisco Caramelo às 08:09

Dezembro 2004
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4

5
6
7
8
9
10
11

12
13
15
16
17
18

20
21
23
24
25

26
27
28
29
30
31


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

subscrever feeds
mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO