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Dez 04



Também estive no São Luís, no penúltimo dia da Japan’s Week. Gostei muito da mostra de aspectos do Japão tradicional, particularmente do enérgico grupo dos tambores Taiko - Matsukawa Kazunomiya Taiko. Impressionante.  

publicado por Francisco Caramelo às 09:19


Está um sábado chuvoso na Penha de França, e recordo-me vagamente de ter passado, nos meados de Agosto deste ano, uma semana em Moscovo. De lá, regressei a Budapeste, e dali a Lisboa, passando ainda por Utrecht na Holanda. Pelo que as impressões ficaram soterradas e quase todas por contar.

O que me traz agora as memórias ao de cima é uma impressão fresca, colhida no lusco-fusco de um espectáculo um tanto ou quanto bizarro inserido nas manifestações culturais da Japan Week. A abrir o espectáculo de quinta-feira, uma dona de casa japonesa, dos seus sessenta e tal anos, vestia, no palco do São Luiz, com grande cerimónia o seu kimono. Começando pelo camisão propriamente dito, a senhora foi-se depois enrolando em faixinhas e pedaços de seda de várias cores, não sem interromper numerosas vezes o curso natural do seu vestir com gestos delicados, pequenos passos bem contidos (ai, as meiinhas brancas com o dedo grande do pé separado dos outros!) e voltinhas um pouco descoordenadas, mas de uma honestidade constrangedora.

Não fui capaz de deixar de pensar, enquanto o espectáculo decorria e me fazia transpirar por todos os poros, que estávamos a assistir a um strip-tease ao contrário – aberração folclórica que parecia, diga-se também, rimar à perfeição com o público do teatro municipal. Seja como for, lembrei-me de Moscovo, e mais concretamente do espectáculo de abertura do congresso a que lá fui assistir: o 37° Congresso Mundial de Estudos Orientais, hoje apelidado de ICANAS – International Congress of Asian and North African Studies, para contornar as inconveniências decorrentes do uso da palavra Oriente nos meios académicos do Ocidente – e do próprio.

O strip-tease (supostamente umas danças de ventre) a que assisti em Moscovo era, contrariamente ao de Lisboa, (quase) verdadeiro. Isto é, seguia a ordem natural das coisas: para seduzir os visitantes do congresso, as jovens estudantes da Universidade de Estudos Orientais (sic) de Moscovo – recém-criada instituição privada dirigida pelo ex-director do Instituto Soviético de Estudos Estratégicos, Professor Vitaly Vassilievitch Naumkin – despiam-se em vez de se vestir. Todos sabem o que isso implica, pelo que não entro em detalhes. Voltinhas, bundas e peitos a abanar, olhares húmidos de sedução lançados para a plateia sem olhar a meios. Como é evidente, nada ficou à vista propriamente dita, porque estávamos num evento oficial. Mas na realidade tudo estava bem perto do soft-porn, porque – os mais grunhos já adivinham o que vou dizer – porque elas eram russas, e portanto não podiam deixar de comportar-se assim.

Estávamos, entenda-se, no rescaldo da abertura solene do 37° ICANAS, ocorrida no grand central hall do faraminoso edifício tardo-soviético da Academia das Ciências da Rússia, um gigantesco bolo de betão, mármore e vidros espelhados cor-de-cobre, plantado no alto de uma ravina do rio Moskva, em posição de domínio explícito (quase se diria: porn) sobre o Centro da cidade. No topo da torre principal do edifício, com os seus trinta e cinco andares, uma gigantesca estrutura de metal (mistura de op-art e construtivismo russo em interpretação pimba), ela própria alta de pelo menos cinco andares, parece ainda hoje querer captar as ondas cósmicas de todo o universo, com uma eficácia científico-socialista que nenhum falo pré-histórico, nenhum linga indiano nem nenhuma Torre Eiffel burguesa alguma vez poderia alcançar.

Dizia eu que o nosso strip vinha no seguimento de uma cerimónia de abertura altamente oficial, em que um dos 23 (!) grandies a fazerem discursos solenes foi nada mais, nada menos do que o Académico Primakov. Junte-se em abono da verdade que a nossa festa já decorreu noutro edifício, um pouco (pouquinho) menos espalhafatoso, mais periférico, cuja principal característica era possuir um par de Twin Towers final-anos-80, uma das quais sem recheio, isto é, com as janelas e todo o resto por colocar, bem dentro do estilo do que se via na Croácia imediatamente depois da guerra de secessão. Ao lado das torres, situa-se um enorme caixote igualmente tardo-soviético com dezenas (pensando um pouco, não deveriam ser menos de uma cententa) de salas de conferências, e quilómetros de corredores revestidos de mármore cinzento-claro, com intermináveis alcatifas corridas pelo chão. Mais que kafkianos, os corredores eram de facto kubrikianos. Ficava-se à espera de aparecer, a qualquer momento, um velho zombie apparatchik a arrombar umas das portas de madeira cor-de-mel com um machado Made in USSR e gritar “morte ao orientalistas ocidentais”! – note-se que quase todo o congresso foi em russo, e que não houve uma única conferência com tradução.

Mas o ponto a que queria chegar a respeito das várias modalidades de strip (e não de rip) era outro. É que o strip que nos foi oferecido como brinde de boas-vindas pelas jovens pin-ups académicas (e futuras matriochkas rechonchudas, embedidas em Vodka como quase todas as russas reais que vimos nas ruas) era Oriental. Quer isto dizer que, para retomarmos um pouco o fio à meada, antes de fazerem o seu show, as miúdas foram cobrir-se de vestimentas orientais atrás de um biombo no hall do edifício. Talvez o fizessem com menos cerimónia do que a japonesa do São Luiz, mas no fundo, parece-me, estavam a fazer algo de muito semelhante. Pouco importa que fossem Sheherezades postiças e não verdadeiras (em que taberna do Califado é que as dançarinas eram loiras e magras?), porque a nossa japonesa também não saía da Kyoto do século XVIII: era provavelmente a esposa de um funcionário cinzentão de uma companhia de seguros de Tokyo. Ao cobrirem os seus corpos da parafernalia oriental mais óbvia – véus de seda muito coloridos, tops e cuequinhas tipo mini a transparecer, faixinhas e brilho no cabelo – as nossas colegas russas tomavam um disfarce que não se poderia inserir com mais perfeição na categoria do folclórico, ainda que acrescida de uns toques pós-modernos, decorrentes da premente realidade que é a globalização.

Além das dançarinas, havia um impressionante machão moreno do Uzbequistão a interpretar canções “populares” da sua terra, a pender para o nosso pimba, mas com elementos techno bastante vanguardistas na sua selvajaria (no bis, acabou por se ver envolvido com duas das Sheherezades). Havia também uma russa cinzentinha e magrinha com um ar muito tímido, género intelligentsia (ou ainda aristocrata triste, chorando a morte das suas cerejeiras, só lhe faltando suicidar-se para dar jus a mais um mito russo) a fazer um karaoke de J-pop totalmente desafinado, na companhia de uma japonesa (talvez) autêntica. Havia também umas turkmenas a apresentar coisas do seu país, e depois havia nós, o público. Nomeadamente eu e um colega japonólogo húngaro, a tentarmos levar a coisa para o lado dos risos. E os outros, a babarem-se todos e completamente. Graças a Deus, o camarada Primakov já não estava connosco.

Enquanto tudo isto decorria, talvez (certamente!) ninguém tivesse a distância necessária para reflectir sobre o filme em que estávamos a entrar. Um congresso na Rússia (este foi o meu primeiro, mas dizem-me que são todos assim) é uma aventura que nos prende muito a atenção às coisas mais práticas – um pouco, diga-se, à maneira como a vida das pessoas no socialismo real se resumia, em boa parte, a uma sucessão de problemas prosaicos do género: arranjar papel higiénico; arranjar ovos e açúcar; arranjar gasolina; arranjar atacadores; arranjar Vodka para esquecer o resto.

Nós, por exemplo, começámos por nos preocupar um pouco com o facto de não existir, nas vésperas do congresso, nenhum programa para as 1200 conferências previstas – que iam, conforme iríamos descobrir algumas horas depois do strip, desde o mais obscuro positivismo académico de “On the positive role of dogs in Sufi litterature”, “On the decipherment of the hieroglyphic script of the Bianili-Urartu-Ararat kingdom” ou “Chagdorzab’s letters as a major epistolary source for studying the Kalmyck of the XVIIIth century” (tudo em russo, claro) até coisas como “Culture must return into day-to-day’s life (including politics) without delay to save civilisation” (isto é um título) ou “Spirituality/Culture – Civilisation. The Dimension of duality, bipolarity in the unity of spirit and matter leading to: spirit in matter” (isto é outro título; confesso que não fui ouvir).

Se alguém quiser divertir-se com 89 páginas de bábás deste género, emprestarei com todo o gosto o meu programa, saído do prelo pelas onze da manhã do primeiro dia das conferências – e onde o meu nome, como o de muitos (he!) outros, simplesmente não constava. Recordo-me de encontrar num corredor, enquanto estava a tentar tratar de me porem no programa, um professor japonês que, sendo incapaz de pedir o que quer que fosse a uma das meninas russas da organização (uma delas tinha-nos enfeitiçado com a sua dança dos véus, obviamente) ia já, quebrantado e triste depois de não ter achado o seu nome no programa, a caminho do aeroporto.

Convenhamos que foi preciso algum espírito empreendedor para ultrapassar o impasse. Durante dois dias, esperei com sinceridade que me colocassem nalguma versão revista do programa (eu devia estar mesmo a sonhar). Depois, por alguma intuição (quiçá devesse apresentar, no ICANAS 38, a realizar-se em 2006 em Istanbul!, uma conferência sobre o tema “The semantic field of the word ‘intuition’ in multi-identitarian contexts of contemporary Lisbon – a case study”) percebi o que tinha a fazer. Era tão simples, mas a vida no Ocidente (ah!) às vezes faz-nos esquecer estas tácticas mais básicas da sobrevivência num meio hostil: entrei numa sala onde estavam em andamento as conferências da secção “Religion”, que eram muitas (percebi depois da sessão que praticamente toda a audiência eram conferencistas). Murmurei umas coisas ao ouvido do chairman, o ilustre Professor Sh. Bira de Ulan-Bator. Este, sem perceber muito bem de que é que a minha proposta tratava em concreto, percebeu perfeitamente o essencial (lembre-se que eles na Mongólia aturaram o melhor dos sistemas políticos durante umas décadas muito largas): este jovem está a querer falar. Vamos então deixá-lo apresentar o seu paper, por exemplo entre “The Indian response to the Patheistic of Ibn al-Arabi” e “The Anthiochian Orthodox patriarchy – speciality of creation and a history” (tudo em russo, claro).

Lá falei sobre os meus cristãos de Socotorá (em inglês, perante uma audiência de todo incrédula), e com o entusiasmo da coisa ainda fui inventar outra conferência, sobre as fontes portuguesas para a história da Ásia no século XVI, que apresentei noutra sessão de uma outra secção. Não fosse a tentação de ir embrenhar-me na cidade em vez de aturar mais estas chatices, concerteza que ia fazer mais algumas intervenções. Mas felizmente, Moscovo estava aí à minha espera, e o chão de um dos próximos corredores que pisei levou-me para fora do palácio do saber. Levou-me aliás quase directamente até uma das estações do mais famoso Metro do mundo, começado em 1935 por um dos mais tarados “déspotas orientais” de todos os tempos, homem (monstro?) de quem ainda teremos ocasião de falar.

Zoltán Biedermann
publicado por Francisco Caramelo às 08:09

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