De vez em quando, desejo vogar para ocidente. Chamarei a este espaço ex adverso, pois procurará o contrário, o outro do outro
A crónica do José Gil, Linhas de Fuga, publicada no Courrier Internacional de 15 de Abril, reflecte, a certa altura, sobre o carisma, sobre a forma como a televisão e a cultura mediática o transformaram. O carisma pressupõe silêncio e sombra; ex adverso, vivemos hoje o tempo da imagem, o tempo do horror ao vazio e ao silêncio. Como diz José Gil, «não há carisma sem silêncio» e, aparentemente, a imagem, na sua voracidade, substitui o silêncio e a sombra, sustentando, no entanto, verdades muito mais efémeras. Não será assim?
Quase haiku
Que terror te ergueu
pétala a pétala
para eu desfolhar,
ó manhã de oiro.
Eugénio de Andrade, Ostinato Rigore Pequeno Formato
Acabei de reler um pequeno conto, «Kali decapitada», em Marguerite Yourcenar, Contos Orientais. A salvação de Wang-Fô e outros. Que escrita envolvente, a de Marguerite Yourcenar. Fascina-me a forma como ela recria a lenda e o mito, elementos tão presentes no pensamento oriental. Depois, em cada história, intui-se a mensagem de Yourcenar, que nos é dirigida, a nós, leitores de hoje, convidando-nos implicitamente a descobrir uma moral e uma crítica à sociedade actual. Pergunto-me se o oriente não representa aqui uma evasão, um descentramento, uma forma de olhar o ocidente mergulhando na alteridade e na diferença, talvez não em si mesma mas como nós a imaginamos.
O conto cativa-nos. Kali era um «nenúfar da perfeição». Vítima da inveja dos outros deuses, foi degolada numa noite de eclipse e mais tarde ressuscitada. A cabeça da deusa foi colada ao corpo de uma prostituta. Kali apresentava agora uma dupla natureza e tinha consciência disso: «A minha cabeça tão pura foi soldada à infâmia - disse ela - quero e não quero, sofro e contudo exulto, tenho horror à vida e terror da morte.»
Kali vive esta existência paradoxal. Um dia, encontra um sábio na orla da floresta - o Sábio. Confessa-se-lhe. Este responde-lhe: «Todos nós somos incompletos - disse o Sábio. - Todos somos divisão, fragmentos, sombras, fantasmas sem consistência.»
Finalmente, conclui: «O desejo instruiu-te sobre a inanidade do desejo - disse ele; - e a pena que sentes ensina-te que não vale a pena ter pena».