Acabei de reler um pequeno conto, «Kali decapitada», em Marguerite Yourcenar, Contos Orientais. A salvação de Wang-Fô e outros. Que escrita envolvente, a de Marguerite Yourcenar. Fascina-me a forma como ela recria a lenda e o mito, elementos tão presentes no pensamento oriental. Depois, em cada história, intui-se a mensagem de Yourcenar, que nos é dirigida, a nós, leitores de hoje, convidando-nos implicitamente a descobrir uma moral e uma crítica à sociedade actual. Pergunto-me se o oriente não representa aqui uma evasão, um descentramento, uma forma de olhar o ocidente mergulhando na alteridade e na diferença, talvez não em si mesma mas como nós a imaginamos.
O conto cativa-nos. Kali era um «nenúfar da perfeição». Vítima da inveja dos outros deuses, foi degolada numa noite de eclipse e mais tarde ressuscitada. A cabeça da deusa foi colada ao corpo de uma prostituta. Kali apresentava agora uma dupla natureza e tinha consciência disso: «A minha cabeça tão pura foi soldada à infâmia - disse ela - quero e não quero, sofro e contudo exulto, tenho horror à vida e terror da morte.»
Kali vive esta existência paradoxal. Um dia, encontra um sábio na orla da floresta - o Sábio. Confessa-se-lhe. Este responde-lhe: «Todos nós somos incompletos - disse o Sábio. - Todos somos divisão, fragmentos, sombras, fantasmas sem consistência.»
Finalmente, conclui: «O desejo instruiu-te sobre a inanidade do desejo - disse ele; - e a pena que sentes ensina-te que não vale a pena ter pena».